1
No céu da Monteira
que toca o mato seco e o barro,
todas as aves voam baixo.
De dia são as cotovias.
De noite são as bruxas
voando por cima de toda a folha
com os sovacos iluminados:
pêlos-pavios
incendiados
nos corpos nús das bruxas
luzidias
e escorregadias:
aves violadoras dos potes de banha
onde as mulheres guardam os rojões
para os maridos ausentes
Quem viu pode dizer
que elas voam do alto da Monteira
até se estamparem no muro do cemitério
rasgando as sílveiras,
as figueiras
e as nuvens de cardos.
Quando as mulheres amanhecem
olheiras de negro quebranto
e arranhadas violentamente,
toda a gente,
e até o padre santo,
tudo viram certamente.
2
aos homens
Entre o Lagoaceiro e as Rosas de Baixo
vão pelos caminhos entre pinheiros
dois homens cheirando o rodado
do Ti Manei Treco.
Às Rosas de Baixo chegam dois carros
descomandados
com seus dois cabeçalhos
pendentes
e moles
como caralhos.
Tudo o que cheira
transtorna.
E os lobisomens da minha terra
tomam-lhe a forma.
3
ao joão cordeiro
[àcerca da literatura]
andava eu atrás de dois dedos de prosa
quando encontrei três escriturários
de uma empresa de obras públicas.
pedi-lhes que escrevessem
em letra de forma quatro facturas:
uma de meio quilo de cristais roubados
na mesquita
outra de duas crianças adoptadas,
por três famílias ricas que as distribuíram
entre elas de forma pouco humana
mas equitativamente
a terceira para calar a boca a um tabelião
algarvio que suspeitava do barman
do hotel de aljezur
ter fugido com as suas três filhas
e exigia por issso recibo
a quarta em nome de uma sociedade editora
que se tinha comprometido a publicar este texto
em troca de uma módica quantia de lugares
comuns
no parlamento austríaco.
as facturas ficaram lindas
e estão expostas
na biblioteca nacional
entre outras obras caligráficas
muito antigas.
o mérito é todo meu.
4
um fado com sentido
o mundo tem duas rodas, meu amigo
uma é a lua, outra é o dia:
entre as duas, ao entardecer, somos esmagados, meu amigo
pela sede de sangue da melancolia.
a minha mãe resmunga
maus olhados e rosários penitentes
e até quando comunga
tem uma praga entredentes.
5
Pelas fendas
das cortinas
espreita as mulheres com as suas rendas
de quando eram meninas
e tira os teus sapatos vagarosamente
desaperta os teus atacadores
um e depois o outro
antes de tentares o crime
que não era preciso.
6
Depois do dilúvio
quando se foram as águas
Deus pôs a enxugar
suas résteas
E adormeceu
cansado de nadar
sem ter acordado o sol.
Dizem que para sempre
a escuridão tomou o lugar
das águas
(De mim digo que ando a pairar
de lugar em lugar
e nem réstea de mim.)
Um fio de água
ainda corre
do corpo sangrado de Deus
que não morre:
um último pequeno vestígio
sulcando a parede
afundada neste vale de lágrimas.
7
Comprido é o caminho dos que partem desta vida
e dos que ficam é a estrada
da madrugada.
Resta uma rua áspera para gastar os sapatos
rotos por onde a alma se escoa.
Ficamos.
Sem boleia que nos salve
de morrer todos os dias um pouco.
Encurtamos os passos cansados
até às quotidianas secretárias desencantadas
dos sótãos da pátria
que salvamos todos os dias
à medida que morremos.
Sobram
algumas luzes de ouro
que não vendemos por preço nenhum:
fios de raiva
feridas abertas
que ficaram por curar
escrituradas
nestas folhas destinadas à solidão
da gaveta.
São os salmos,
os cânticos.
São as sagradas escrituras.
8
á eternidade
Ê aos poetas que eu falo:
Mal nasci que me habituei à ideia da morte
mais depressa que a esta violência da vida.
E desde cedo que vivo com ela
como quem vive com a mulher e os filhos
e com a mãe do pai de um tio afastado
que não tem mais ninguém
e já não se alimenta a si mesma
e definha
mas como se tivesse desistido de morrer.
Eu e ela trocamos ideias sobre os instantes
ideiaís
aqueles em que valeria despenhar
o corpo para fora do último andar
a alma
e cair
para o nunca mais.
Depois de vários anos de vida em comum
e muita filosofia
quase ao mesmo tempo
mas separadamente
demonstrámos o teorema
que até esse momento não passava de conjectura
e por isso afligia tanto os poetas
como outros cientistas.
Chegámos às mesmas conclusões por caminhos
diferentes e quando os recitámos
primeiro ela depois eu
e vimos que deles escorria o mesmo cheiro
Com a mesma náusea
decidimos amar-nos para sempre ali mesmo
entre as pilhas de papel da demonstração.
Agora somos três os que definhamos
porque eu e a ideia da morte nos distraímos
no instante propício
da morte
e a velha que comigo vive, como já disse.
pelo mesmo motivo
se tornou eterna.
Quando os poetas arranham as paredes do céu
quebram as unhas.
9
Não sabia distinguir as palavras sagradas:
algumas sabia que sabiam a sal
e outros cristais
outras eram a ordem nos taipais
do círculo das almas encarceradas.
Não sabia se havia palavras sagradas:
mas sabia que anjos as entoavam
em coro aos seus ouvidos o torturavam
e era na sua cabeça que estavam encarceradas.
Sabia que nas palavras estava louco
e só quando as escrevia
se aliviava ao menos um pouco.
E por saber o som e olhar as cores
de tantas palavras é que se perdia
numa loucura de labirintos e corredores.
10
O Alberto diz: o escritor escreve
sobre uma parede altíssima, equilibrado numa chá
vena de porcelana que não serve
a musa radiante,
montada numa cafeteira de esmalte, está
equilibrando mil chá
venas de chá
fumegante.
Enquanto uma bicileta teórica
faz o pino sobre o compêndio de retórica,
o escritor equilibrista
mostra as suas habilidades na pista
de uma página histórica.
O Alberto disse.
11
Moldaram-lhe a cabeça
em barro e coisas verdadeiras.
E deram-lhe uma cara de aparências
a envolver o oco frio dos olhos que não veem;
Os ouvidos são escadas para um sótão vazio.
Há quem o tenha visto
na tentação de afagar uma criança
mas a criança nunca esteve ao alcance da sua mão.
Há quem pense que ele não existe
e seja por isso ignorante
e triste.
12
Nunca abria
a gaveta
onde se guardava inteiro.
Atascada de papéis vivia
a gaveta
e dentro dela exilado para sempre o tinteiro.
13
14
[o círculo da noite]
Na mão da noite
no aconchego doce do cavado da mão da noite
ao longo da sua linha principal me deito
a cabeça num fundo
Respiro.
Respiração ofegante
dos milhares de seres vivos que escolhem a noite
para seu refúgio
para a sua eterna e desigual luta
pela vitalidade –
– procuram sangue e despojos
os laboriosos insectos
e os caranguejos
– procuram espaço
ocupam outra humidade marchando contra si mesmos
e há homens que se
– procuram nos espelhos
nos mil espelhos das mil faces
da noite misteriosa.
Há ruidos que só se percebem na sua nocturna
invenção,
nessa quebra do silêncio
de uma noite que vem amar-se a si mesma e se transfigura
e acolhe
mulher de colo imenso
toda a vida
e uma e outra onda ainda
pequeno roçar de água
na areia húmída
já perturbada pelas carícias do mar.
Há homens que cantam docemente
entrando pela noite dentro como
se a noite necessitasse de ser afagada
– parece-nos então que a noite não esconde
outra face
a da violenta noite dos crimes
por desvendar.
Outros perturbam a noite
– cantam para abafar os ruídos e o silêncio
da noite
cantam para esquecer o seu
trajecto nocturno
como se tapar um desvão da alma
curasse do sonho.
Outros sentam-se à mesa de um café
deserto
ou no banco orvalhado da noite
luminosa
e escrevem
que se deitam na palma da mão da noite
ao longo de uma ruga
linha principal da vida
e do sofrimento.
Embalam-se. Adormecem.
E a noite descansa enfim sobre os seus ombros
partidos de cansaço.
15
à raquel baptista
Ao oitavo dia Deus procurava casa
entre os homens.
Não encontrou senão um apartamento
num 50º andar, por 50 mil escudos
e com o elevador avariado.
Por não poder sair ficou a descansar
e a vigiar a cidade
e o mundo inteiro.
16
Quando me apareceu o estigma
na palma da mão em forma de $$\Sigma$$
maravilhei-me com o enigma.
Quando infectou puz-lhe tintura e uma ligadura.
E no lugar da fé puz serradura.
17
Havia uma borboleta preta e vermelha
na multidão.
Sobrevoava sempre a mesma velha
como uma maldição.
Quando a velha a enxotava com uma palmada
seca no ar
a borboleta tornava-se amarelada
e pousava no olhar.
As lágrimas então corriam pelos vales
rasgados no rosto da fadiga.
18
No meu círculo de solidão
em volta de mim desenho
de minha mão
um círculo em volta da solidão
em que me tenho.
No meu circulo de solidão
há uma palmeira acariciada pelo vento
com sua cabeleira dando a 1″ demão
de verde no firmamento.
As palmeiras bordam a solidão
cercam-na de cuidados até ao mar.
Sou uma ilha uma perdição
uma jangada de palmeiras a flutar.
19
As mulheres abrem as narinas
ansiosas por Abril.
Tocam Março com grandes uivos,
nas noites de lua
sentam-se abertas para o cheiro
do vento
do cio.
(Não têm frio)
Cravam as unhas nas palmas
da mão
e deixam voar o sangue
no vento
de Abril.
Abrem um sulco de cheiro,
no ar um corredor de maresia
e sémen.
Quando um coágulo se deposita
nas coxas da areia
as mulhaeres incendeiam a praia
20
ao alcobia
ao douro
[Apelo]
Não te decidas já.
Amanhã uma carta da tua mãe
vai trazer duas braçadas de flores
e com elas as operárias abelhas
que recolheram o pólen brilho dos olhos
do útero da tua mãe
o orvalho do sémen:
são as tuas amantes que regressam.
Não te decidas já.
Amanhã uma carta do teu amigo
vai trazer dois livros de poemas
as duas letras bordadas
da neblina dos olhos do útero da tua mãe
de quando ela era menina:
são as tuas iniciais.
Não te decidas já.
Amanhã o dia vai estar bonito
na margem esquerda o sol brilhante
vai querer assistir à tua queda na água
do rio para onde queres regressar:
são os dedos na boca.
Não te decidas já.
23
[Aveiro ]
Todas as cidades têm cinco bicas uma fonte
seca u ma praça de vento uivante e deserta
um destino de puta fiel mas incerta
e desesperada que bebe a linha do horizonte
Todas as cidades têm uma estátua em ruínas
um centro de pedras comidas por antigas águas
e as pessoas moribundas escalam as colinas
estendem a corar as vestes as pestes as mágoas
Todas as cidades têm uma maldição
venérea por mãe
uma doença na alma um canal de podridão
Para ele das cinco bicas-esgotos de fel escorrem
as águas do útero de ninguém
e levado nelas o sémen dos que morrem.
24
[estava a pagar quando acordei ]
mandei lavar
as tuas camisolas ocas
na lavandaria
encontraram nelas coladas
os ombros de porcelana
da tua alma
pediram-me contas
e eu paguei.
25
à bló
Rasga do teu peito
três tiras da tua pele:
uma para vendar os olhos vazios
outra que chegue para os ouvidos e a boca
e a terceira para calçar os teus pés de peregrino.
Estás pronto para partir.
26
Por onde somos perseguidos
estão vazias as ruas
Só nos espreitam os vidros partidos
como olhos de casas nuas.
As outras casas não têm portas:
é para sermos perseguidos
que há as horas mortas.
27
Os ratos roeram o sótão da memória
os trastes os jornais velhos as traves
Os ratos roeram a minha história
alguns pedaços da alma as aves
Os ratos roeram-nas prontas a voar
O que não roeram não presta:
ilesa a solidão de me calar
no lugar das janelas abertas uma fresta.
28
[espécie]
Abrir ao meio dia um rasgão
de sombra de escuridão
ou uma cova de luz?
Por que desespero
se masturba a última avestruz?
Rasga a folha onde desenhaste
o sol e a lua
e escreve uma nova frase que seja tua
com a mão com que te masturbaste.
29
Mas é tão triste ver-te bordar anos
como se toda a paciência te tivesse assaltado
e não suportasses as agulhas do tempo parado.
Mais triste é ver envelhecer a figura do teu bordado.
31
Não há mais nada
para escrever
Escrevi as grandes e nobres ideias
na areia da praia
e nos vidros embaciados
da minha juventude.
Hoje curvado cheiro
os rastos desse tempo
e reescrevo pacientemente
tudo igual
na areia da praia.
32
[Reunião pela paz]
Não deixes que o espírito
da pomba
que comeste
te persiga.
Vomita
apenas
as penas.
33
à virgem negra
umas vezes rasgo os véus da virtude
doi-me maravilhosamente
como quando rasgo os tímpanos
com um pau de fósforo.
umas vezes rasgo a película dos sentidos
e vivo rodeado de penumbra e de silêncio
perserveí somente o gosto
pela morte.
umas vezes engulo duas espadas de fogo
dói-me maravilhosamente
e à segunda nem grito de dor
e vivo rodeado do meu silêncio
esquecido da cor da minha voz.
umas vezes penso que vai ser com pena
que corto a minha mão direita
porque a esquerda mal escreve.
umas vezes apetece-me acordar.
34
[cântico]
Não persigo a mulher do meu vizinho
nem desejo a mulher do meu amigo
Ofereço a Deus os meus momentos de força
e nos momentos de fraqueza tomo a Sua mão
antes de atravessar a rua
Os meus olhos vêem tudo o que é belo e puro
e cegam para toda a maldade
e para todas as formas de apelo da carne
Mas há momentos em que Deus me larga da mão
e segue a mulher perdida
Tento convencer-me que Deus só quer reconduzi-la
ao caminho da pureza e da virtude
Quem me dera apanhá-Lo em “flagrante”.
35
Enforquei o
o meu cão
e o meu gato
no mesmo laço
da mesma corda.
A morrer
ainda se atacavam
um ao outro baloiçando
freneticamente.
Mais breve
por isso
foi o seu suplício.
36
Pensa!
Puxa pela cabeça!
Foram os conselhos que lhe deram.
Finalmente
pendurado pleo pescoço
na sua foraca
que engendrou pensando
não pensa.
Só puxa pela cabeça.
37
38
só as mulheres de pedra
podem usar brincos
de água corrente
39
No dia em que foi decretada a greve
dos professores
um professor disse para quem o quis ouvir
Os professores ganham mais do que merecem!
E eu
que estava mesmo ali ao lado
calei-me
porque sei
que cada um
ao falar de si mesmo
tem razão.
40
Um dia
ao Parlamento
um professor de finanças de duas universidades
que ganha como primeiro ministro
declarou
a propósito de um aumento de salários dos professores
que tinha vergonha de ser professor.
De todas as declarações do primeiro ministro
considero ser aquela
a mais séria e verdadeira.
41
ao fernando
sem que a chame
ela vem:
é a mãe
e também
rude como um pai
assim como vem
vai
não há outras provas
para o amor.